segunda-feira, 18 de abril de 2011

Será que o Brasil entra nos trilhos?

Desde os tempos do Império, país tenta investir no transporte por trem

CEZAR MARTINS


Comboio da Vale com vagões especiais para minério
de ferro / Foto: Divulgação

Ciente das vantagens que o transporte de cargas e passageiros por ferrovia trouxe a países europeus e aos Estados Unidos, o governo brasileiro editou uma lei que autorizava investidores a explorar a construção e operação de estradas de ferro para interligar as regiões da Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. A perspectiva de baixos lucros e altos custos, porém, despertou pouquíssimo interesse e nada foi feito por quase 30 anos.

Contada assim, a história parece referir-se ao passado recente do Brasil, que hoje tem aproximadamente 29 mil quilômetros de estradas férreas em utilização e precisa chegar a 52 mil até 2020 para desobstruir parte dos gargalos que comprometem a competitividade da indústria nacional. Entretanto, ela aconteceu em 1835, no tempo do Império, quando as mercadorias eram transportadas no lombo de mulas, e foi a primeira tentativa frustrada de promover a integração do território nacional a partir do modal ferroviário. Nesta década, 75 anos depois, o setor deve receber uma injeção de R$ 100 bilhões, montante capaz de fazer empresários e analistas acreditarem que, desta vez, a produção nacional finalmente vai andar nos trilhos. O valor é quatro vezes maior do que o aplicado nos últimos dez anos e contabiliza recursos previstos para ser liberados pelos governos federal e estaduais para ampliação da malha férrea urbana e interestadual, de carga e de passageiros, mais aportes que deverão ser feitos pelas concessionárias vencedoras de licitações. Outra parte virá, ainda, de linhas de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Existe a expectativa também de que, pela primeira vez, o transporte de pessoas receba a maior parte dessa vultosa quantia – aproximadamente R$ 75 bilhões –, o que seria considerado um dos principais avanços na política para o setor. Só a ampliação do sistema metroviário de São Paulo, incluindo a construção de novas linhas e melhoramento da rede de trens metropolitanos, deve consumir algo próximo a R$ 6 bilhões até 2014.

Além da capital paulista, o Rio de Janeiro promete investir quase R$ 10 bilhões para melhorar seu sistema de trens e metrô até 2016, um dos compromissos assumidos pelo país para sediar os Jogos Olímpicos. Brasília, Recife, Salvador, Fortaleza, João Pessoa, Natal, Alagoas e Porto Alegre também têm projetos para aumentar a oferta de transporte ferroviário. “Existe um problema grave de mobilidade em quase todas as cidades, que expõe os passageiros aos mesmos gargalos do transporte de cargas. Praticamente todos os sistemas ferroviários municipais e intermunicipais do Brasil têm planos de expansão”, comenta Vicente Abate, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer).

Velocidade máxima

Dentro desse plano de investimentos, um dos projetos mais caros e polêmicos, capitaneado pelo governo federal, diz respeito a uma linha de alta velocidade entre Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro, que passa por regiões de alta densidade demográfica como o vale do Paraíba e pode custar R$ 33 bilhões. A ideia acendeu uma discussão inflamada entre especialistas. Os opositores contestam os estudos preliminares, afirmando que a demanda prevista de 32 milhões de passageiros por ano foi superestimada e que os gastos com a obra, grande parte financiados com verbas públicas, serão bem maiores do que os divulgados inicialmente. Além disso, eles alegam que o trajeto não está bem planejado.

Os defensores, por sua vez, dizem que a distância entre as duas principais cidades do país, 430 quilômetros, é ideal para a instalação de trens que podem atingir até 300 quilômetros por hora, amplamente difundidos na Europa e no Japão e cuja tecnologia precisa ser incorporada o mais rapidamente possível pela indústria nacional. Eles afirmam também que a demanda de passageiros crescerá com o tempo e o investimento inicial será recuperado, pois a expectativa de uma receita anual de R$ 2 bilhões seria conservadora.

A polêmica foi tão grande que o governo federal teve de adiar, de 16 de dezembro de 2010 para 29 de abril de 2011, o leilão para ceder à iniciativa privada a construção e operação do trem-bala brasileiro. De acordo com o diretor geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Bernardo Figueiredo, a decisão foi tomada para atender ao pedido de grupos de investidores, que necessitavam de mais tempo para finalizar estudos de viabilidade. Até a primeira data marcada, apenas um consórcio, coreano, havia manifestado o desejo de participar da licitação. Com o adiamento, acredita Figueiredo, serão mais quatro. “O governo busca a melhor proposta e não poderíamos ficar alheios ao interesse de alguns grupos”, afirma o diretor, sem citar quais são as outras empresas dispostas a entrar na concorrência. Para complicar, a ANTT terá de encontrar uma maneira de driblar a recomendação do Ministério Público Federal do Distrito Federal de que suspenda o leilão porque as avaliações de impacto social e ambiental da obra não estariam satisfatórias.

A União, no entanto, confia tanto no sucesso do empreendimento que está disposta a usar dinheiro público para garantir o início das obras. Em medida provisória editada nos últimos meses de mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o BNDES foi autorizado a emprestar R$ 20 bilhões aos vencedores da licitação, com juros subsidiados, prazo de pagamento de 30 anos e seis meses de carência após o início da operação, previsto para 2016. O texto inclui ainda a diminuição dos juros caso a receita inicial gerada seja menor que a esperada e o ressarcimento do banco pelo Tesouro Nacional se o consórcio não pagar o empréstimo. O governo pretende que um dos maiores clientes do futuro trem seja a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, que tem 80% do tráfego de seus serviços concentrado entre Rio de Janeiro e São Paulo e, por isso, poderia ter um vagão exclusivo para o transporte das mercadorias despachadas diariamente.

Ascensão e queda

O Brasil já teve uma quantidade razoável de passageiros e cargas transportada por trens, mas a falta de planejamento de longo prazo e as crises econômicas fizeram o movimento decrescer ao longo dos anos e impediram uma integração eficiente entre regiões do interior e os portos. No final da década de 1950, quando as fronteiras agrícolas eram menores e a produção industrial era um embrião em comparação à atual, o país contava com cerca de 40 mil quilômetros de trilhos, quase 11 mil a mais que atualmente. A primeira ferrovia brasileira foi inaugurada em 1854, construída por Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá, para ligar o Porto de Estrela, na baía da Guanabara, até Raiz da Serra, próximo à cidade de Petrópolis (RJ), onde a família imperial costumava veranear. O transporte de passageiros, na época, era feito por uma locomotiva a vapor chamada de Baronesa, que funcionou por mais de 30 anos.

Exemplo do planejamento falho é o fato de as ferrovias terem crescido para atender, na maioria das vezes, ciclos econômicos curtos e específicos, como o da borracha, no início do século 20. Concluída em 1912, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi construída como forma de compensar a Bolívia pela cessão do território do atual estado do Acre e sua função era levar o látex extraído das seringueiras amazônicas na região norte daquele país até a parte navegável do rio Madeira, pelo qual alcançaria o Amazonas e por fim os terminais portuários. O trecho ferroviário de 366 quilômetros de extensão, entre as cidades rondonianas de Guajará-Mirim e Porto Velho, parecia ser a melhor solução para vencer as cachoeiras e corredeiras intransponíveis no rio Madeira, mas a construção da via, iniciada em 1907, mostrou-se uma tarefa difícil por conta do terreno e do ambiente hostil.

Estima-se que 6 mil operários, entre brasileiros, bolivianos, colombianos, ingleses, italianos, americanos e de outras nacionalidades, morreram durante a obra, vítimas de doenças como malária e febre amarela, de picadas de cobras e ataques de tribos indígenas, fato que valeu à estrada o apelido de Ferrovia do Diabo. Menos de 20 anos após o término da obra, os seringais da Malásia já conseguiam produzir látex com custo muito mais baixo e o comércio com a América do Sul entrou em declínio. Sem outra função a não ser o transporte desse produto, a ferrovia foi abandonada pela Madeira-Mamoré Railway Company e voltou à administração do governo brasileiro, que a manteve em funcionamento por mais 40 anos, mesmo com prejuízos e críticas aos serviços prestados. Sua incrível história, no entanto, fez com que passasse a integrar o Patrimônio Histórico Nacional e já serviu de inspiração a um livro e uma minissérie. Um pequeno trecho próximo à capital de Rondônia está sendo restaurado para a realização de passeios turísticos.

Nas regiões sul e sudeste, o desenvolvimento ferroviário seguiu a mesma lógica, o que proporcionou o surgimento de diversas pequenas estradas de ferro destinadas a escoar a produção agrícola, principalmente café, até os portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR), no Paraná. Até 1930, o estado de São Paulo contava com 18 ferrovias, metade delas com menos de 100 quilômetros de extensão, destinadas a fazer a ligação com os grandes ramais que levavam até o litoral. Com o fim desse ciclo, os trilhos e equipamentos foram abandonados e boa parte deles permanece sem uso. O desinteresse pelas ferrovias atingiu o auge há 60 anos, quando o governo brasileiro, diante da necessidade urgente de interligar o país para conseguir exportar alimentos e estimular o desenvolvimento da incipiente indústria, passou a investir em rodovias, cuja construção é mais rápida e barata. “O modelo rodoviário mostrou-se adequado para as necessidades daquele momento e funcionou, com erros e acertos. Mas agora é preciso expandir a oferta de transporte para podermos ter competitividade”, avalia Abate, da Abifer.

Nessa mesma época, em 1957, quase todas as estradas de ferro passaram a ser administradas pela Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), estatal criada naquele ano. Ficaram excluídos apenas 5 mil quilômetros aproximadamente das linhas de São Paulo, mas em 1971 eles foram englobados na Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), instituída pelo governo estadual. Nos anos seguintes, as crises econômicas e a falta de investimentos levaram as duas empresas à falência. Com dívidas exorbitantes, a RFFSA foi incluída no Programa Nacional de Desestatização, lançado em 1990, e seus ativos foram leiloados em 1996. A Fepasa também foi vendida, depois de ser incorporada em 1998 à estatal federal, finalmente extinta um ano depois. A operação das ferrovias ficou, então, a cargo de empresas privadas que adquiriram a concessão dos serviços de transporte e se comprometeram a investir na recuperação das linhas.

De lá para cá, avanços importantes ocorreram na modernização das ferrovias e no volume transportado. Segundo dados da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), cujas empresas afiliadas detêm a concessão de 28,3 mil quilômetros de vias férreas, desde a privatização foram investidos R$ 23 bilhões no setor e o total de cargas saltou de 256 milhões de toneladas, em 1999, para 460 milhões em 2010. A malha, porém, não foi ampliada, assim como o tipo de mercadorias transportadas. Aproximadamente 80% delas são minério de ferro e carvão mineral, insumos produzidos por grandes conglomerados como Vale, Usiminas e CSN, que controlam as operadoras logísticas. “O primeiro ponto a destacar, na questão do transporte ferroviário, é que, em 14 anos, a iniciativa privada recuperou o que existia e alavancou o investimento. Agora, é preciso aumentar a malha e ajustar o marco regulatório, para que os investidores possam injetar dinheiro, corrigir deficiências e agregar novos produtos ao transporte. Há grandes expectativas para esta década, quando finalmente parece que teremos um planejamento estratégico para a área de transportes”, afirma Rodrigo Vilaça, diretor executivo da ANTF.

Crescimento planejado

Uma das razões para otimismo é o Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT), desenvolvido pelo Ministério dos Transportes e elogiado por reunir estratégias de melhoria e crescimento integrado para todos os modais – aéreo, rodoviário, marítimo e ferroviário. De acordo com suas diretrizes, até 2025 as ferrovias deverão ter participação de 35% na matriz nacional de transportes – 10% a mais do que representam atualmente e 5% acima do que é estimado para as rodovias no mesmo ano. O PNLT também serve como base para a aplicação dos investimentos públicos previstos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, que entra em sua segunda fase no mandato da presidente Dilma Rousseff. Para que esses números sejam alcançados de verdade, no entanto, apenas os R$ 43 bilhões prometidos pelo poder público até 2014 para a expansão ferroviária não serão suficientes. De acordo com os especialistas, é preciso resolver outras questões delicadas que não estão ligadas apenas à verba disponível.

As regras para concessão à administração privada das ferrovias que já estão prontas e das que serão construídas são um dos pontos mais importantes nessa discussão. O novo marco regulatório deveria ter sido aprovado no ano passado, mas ainda depende da sanção da presidência da República por conta de tópicos polêmicos e questionamentos das empresas que já operam o sistema. O maior problema está no destino que será dado a boa parte da malha licitada, mas que está subutilizada – segundo a ANTT, menos de metade dos trilhos existentes no país tem a passagem de ao menos um trem por dia.

A proposta do governo é que os trechos com baixa movimentação de carga retornem para a União, sob a administração da estatal Valec – Engenharia, Construções e Ferrovias, e possam ser utilizados por outras empresas que possuam composições próprias mediante o pagamento de taxas menores que as cobradas atualmente pelas companhias que detêm as concessões. Na visão governamental, o acordo existente de concessão não teve sucesso para incentivar o crescimento da malha ferroviária e, por isso, precisa ser alterado.

De acordo com as empresas, a retomada de trechos de ferrovias sem algum tipo de compensação desrespeita os contratos firmados na metade da década de 1990. “Ferrovias não são um negócio para amadores, são projetos que alcançam resultados em médio e longo prazo. Os benefícios serão vistos daqui a seis ou oito anos. Além disso, é preciso que os aeroportos, portos e rodovias estejam mais bem equipados e, de alguma maneira, interligados às ferrovias”, afirma Vilaça.

Outra necessidade urgente que deve ser objeto de projetos ferroviários é o atendimento de importantes setores da economia, ligando polos industriais e áreas agrícolas de grande produção aos centros consumidores das regiões sul e sudeste. Levantamento realizado entre profissionais de diferentes segmentos produtivos pelo Instituto de Logística e Supply Chain, que conta com professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, verificou que a baixa disponibilidade de rotas ferroviárias no Brasil praticamente inviabiliza a distribuição de produtos por esse tipo de transporte.

Estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com empresários de 20 setores diferentes vai na mesma direção e mostra que 65% dos entrevistados passariam a utilizar os trens se houvesse essa opção. Como base de comparação, a Alemanha, país cuja área territorial é 95% menor que a brasileira, possui quase 20 mil quilômetros a mais de trilhos. “Se o Brasil construir as ferrovias, a demanda aparecerá. Para longas distâncias, transporte sobre trilhos é mais versátil, tem menor custo e se torna mais viável para cargas de alto volume e baixo valor agregado”, afirma o coordenador do Ipea, Carlos Campos Neto.

Uma última preocupação diz respeito à segurança e à velocidade do transporte praticado sobre trilhos. Estima-se que, no Brasil, cerca de 200 mil famílias morem dentro da faixa de segurança que deveria existir à margem das ferrovias, que varia de 7 a 12 metros, dependendo das condições do terreno. Essas invasões, na maioria das vezes ignoradas pelos administradores públicos, além de colocar em risco a população, obrigam as locomotivas a diminuir bastante a velocidade, quando não a parar totalmente, aumentando o tempo de viagem. As excessivas passagens de nível – cruzamentos das ferrovias com rodovias – são outro motivo constante de reclamação de quem atua na área.

Carga pesada

O principal projeto para assegurar a expansão necessária é a conclusão da Ferrovia Norte-Sul, responsável por ligar Açailândia (MA) a Panorama (SP), em um trecho de mais de 2 mil quilômetros. Essa via é chamada pelos técnicos do governo de “espinha dorsal do transporte ferroviário brasileiro”, porque facilitará conexões com outras estradas que levam até os portos e atenderá regiões produtoras de grãos do centro-oeste e zonas industriais do nordeste e do sudeste. A ferrovia começou a ser construída em 1987 e já tem uma pequena parte concluída, 215 quilômetros, que são utilizados pela Vale para levar minério até a Estrada de Ferro Carajás, a qual alcança o Porto de Itaqui, no Maranhão. Outros trechos, que representam 70% do restante do trajeto, estão em obras, mas a entrega teve de ser adiada por problemas causados pela troca das empresas contratadas pelo governo para a construção. A expectativa é que toda a Norte-Sul esteja concluída até 2012, a um custo estimado de aproximadamente R$ 7 bilhões.

Para o setor do agronegócio, uma das ferrovias mais importantes é a chamada linha Leste-Oeste, cujo objetivo será conectar o porto baiano de Ilhéus ao interior do Tocantins. Com aproximadamente 1,5 mil quilômetros e previsão de custo de R$ 6 bilhões, essa ferrovia estará ligada ao eixo Norte-Sul e, segundo a Valec, estimulará o desenvolvimento da produção agrícola do oeste da Bahia. É inegável, porém, que também atenderá outros interesses empresariais, pois permitirá um escoamento mais rápido do minério produzido na região de Caetité, no interior do estado.

A Ferrovia Transnordestina, com conclusão prevista para 2012 e custo estimado em R$ 5,4 bilhões, é um projeto encabeçado pela CSN e vai ligar os portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco, ao Piauí. Sua implantação ajudará, de acordo com o governo, a aumentar a competitividade da produção agrícola na região.

O Ferroanel de São Paulo, obra que estava prevista na primeira fase do PAC, mas não tem prazo para sair do papel por causa de disputas políticas, é outro projeto considerado essencial para aprimorar o escoamento da produção. O projeto, orçado em R$ 2 bilhões, previa a interligação das principais ferrovias do estado, aproveitando parte do trajeto do rodoanel, via que possibilita aos caminhões alcançar diferentes rodovias sem passar pelo trânsito caótico da capital. O Ferroanel permitiria uma distribuição mais eficiente da carga sem a necessidade de utilizar os trilhos ocupados pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos para o transporte de passageiros.

Apesar dessas vantagens, o destino de boa parte das mercadorias movimentadas pelo Ferroanel acabaria sendo o porto do Rio de Janeiro e não o de Santos, como deseja o governo estadual. Mais do que isso, não ficou claro como as empresas concessionárias que exploram as linhas paulistas seriam remuneradas e o projeto, então, foi paralisado – uma prova de que, mesmo com verbas disponíveis, estudos atualizados e a necessidade clara de expandir o transporte sobre trilhos, o apoio político ainda se move à velocidade de uma maria-fumaça e pode colocar em risco o tão esperado crescimento do setor ferroviário no país.

“O brasileiro está destruindo o país”

Melquíades Pinto Paiva defende potencial nordestino e receita educação como remédio contra a corrupção FRANCISCO LUIZ NOEL Cearense de Lavras da Mangabeira, cidade de 31 mil habitantes na caatinga que um dia foi povoada pelos índios cariris, no sul do estado, próximo à divisa com a Paraíba, o engenheiro agrônomo, biólogo e professor Melquíades Pinto Paiva encerrou 2010 cercado de reverências em sua terra. Doutor em ciências e especialista em peixes, ele recebeu, em dezembro, pelo conjunto da obra, o título de professor emérito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Seu currículo inclui mais de 300 trabalhos científicos publicados no país e no exterior, participação em missões internacionais e, em 1960, a criação da estação de biologia precursora do Instituto de Ciências do Mar (Labomar), referência nacional em estudos da pesca e ecossistemas marinhos. Semanas antes, Melquíades havia lançado uma alentada radiografia da realidade física e humana da região, Nordeste do Brasil – Terra, Mar e Gente (Bei Editora, 408 páginas). Às vésperas dos 80 anos, o professor não se resignou à aposentadoria acadêmica e pôs no papel reflexões e conhecimentos acumulados em seis décadas de atividades em seu estado e no Rio de Janeiro, onde se radicou nos anos 1970. À visão que associa o nordeste ao atraso, ele contrapõe o potencial de riquezas e o trabalho do povo nordestino. Para os problemas ambientais, reivindica energia dos governos. Para os sociais, receita a educação, atribuindo a ela poderes de antídoto também contra a corrupção, que, faz questão de ressaltar, não é exclusividade regional. No prefácio de Nordeste do Brasil – Terra, Mar e Gente, o geógrafo e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) Aziz Ab’Sáber se junta às manifestações de reconhecimento ao trabalho do cientista cearense, crítico do projeto de transposição das águas do rio São Francisco: “Parabéns, Melquíades, pelo fato de ter pensado mais diretamente nos pobres, membros de uma geografia humana sofrida, fato que transforma seu livro em um novo paradigma, aparecido muitos anos depois da grande obra Geografia da Fome, do saudoso Josué de Castro”. Esta entrevista foi concedida no Rio de Janeiro, dias antes das homenagens na UFC, em Fortaleza. Problemas Brasileiros – O que o motivou a radiografar o nordeste? Melquíades Pinto Paiva – Este não é um livro nos moldes clássicos sobre a região, pois pouco fala de seca e miséria. Não aceito que só se olhe o nordeste como vítima da seca, lugar de povo atrasado, pobreza e analfabetismo. Eu quis mostrar que, ao contrário, o nordeste é potencialmente rico. Procurei dar uma visão global, integrada da região. Além de falar da ecologia e das condições de vida, abordo a riqueza em recursos naturais, inclusive os do mar, e em inteligência, principalmente dos mais humildes. Muitos nordestinos foram gênios, mesmo sem ler e escrever, como Luiz Gonzaga. O nordeste não é tão atrasado culturalmente quanto se pensa. PB – Quantos nordestes há no nordeste? Melquíades – Tento mostrar que há diversas regiões nordestinas, com recursos e culturas diferentes. O nordeste possui três grandes formações étnicas: a da zona da mata, a do homem da caatinga e a do praieiro. Na primeira, o homem é produto da civilização do açúcar, em que a presença do negro é grande. O homem da caatinga é da civilização do gado, com influência predominante do índio; e o da beira da praia, pescador, é mistura dos outros dois. A pesca no nordeste, por exemplo, é caracteristicamente indígena. Marca disso é a jangada, sem casco, que chega aonde não há porto, levada à praia com a força humana. Outras influências do índio são o curral de pesca e o jererê, arco com rede usado por muito tempo na captura da lagosta. PB – O meio físico ainda é um grande condicionante para muitos nordestinos? Melquíades – A região semiárida, dominante no nordeste, é a mais povoada do gênero no mundo. Há muita gente no sertão, caracterizado por um período de chuva e um de estiagem. Enquanto o homem da zona da mata, sedentário, engordou comendo doce, como tão bem mostra Gilberto Freyre, o do sertão, da caatinga, é um bravo, porque povoou zonas consideradas inapropriadas e se acostumou a enfrentar a luta a cada dia. No tempo da chuva, todo mundo trabalha; no outro, é hora da colheita, do divertimento e do preparo de um novo ciclo, porque não há mais o que fazer. PB – E quando a chuva não vem? Melquíades – O que desequilibra tudo é a falta de chuva na época de vida. A primeira consequência é o fenecimento das lavouras de curto ciclo, como milho, feijão e outras culturas de subsistência. Antigamente, a tragédia era maior, porque os proprietários rurais não sustentavam seus moradores, que migravam, no abandono e na miséria. O Quinze, de Rachel de Queiroz, retrata isso, assim como a vasta literatura sobre a seca de 1877, que durou três anos. PB – O que mudou em relação às secas nas últimas décadas? Melquíades – Uma brutal mudança vem ocorrendo. Com a penetração das comunicações e o aparelhamento do governo, o homem já não migra tanto. Até porque, no sudeste, já não há emprego. A grande migração no nordeste começou em direção à Amazônia, no apogeu da borracha, em inícios do século 20. Depois da 2ª Guerra Mundial, o fluxo foi para o sudeste, com o surgimento das estradas e do trabalho na construção civil. Foi o nordestino quem construiu Brasília. Hoje, o dono da terra bota seus moradores para fora para não pagar salário mínimo nem INSS, como o governo exige. O cinturão de miséria que existia na periferia das grandes cidades está aparecendo na das pequenas, no interior. São os boias-frias, à espera de trabalho ocasional. PB – As migrações não divulgaram o nordeste? Melquíades – Sempre houve muita discriminação. Agora, estão conhecendo o nordestino não porque ele se incluiu na sociedade do sudeste, mas porque o pessoal vai nas férias para as praias do nordeste e começa a penetrar no interior, graças às facilidades das comunicações e ao barateamento do turismo. Há também o turismo religioso, em cidades como Juazeiro do Norte, onde viveu Padre Cícero, no Ceará, e Bom Jesus da Lapa, na Bahia. PB – Quais as grandes riquezas da região? Melquíades – Onde há pedra e falta chuva, tem minério. É regra mundial. No nordeste, temos minerais radiativos, manganês, cobre, berilo, titânio, grafita. Procurei localizar, estado por estado, todas as ocorrências de minerais importantes, tanto as já medidas quando aquelas ainda em pesquisa. A flora regional também é rica, com espécies importantíssimas, de grande potencial econômico para as indústrias de madeira, construção civil, alimentação e medicamentos. Há a oiticica, que produz óleo fino, a carnaúba, que dá cera, a imburana-de-cheiro, de uso na indústria farmacêutica. Exemplo das potencialidades da flora é o umbuzeiro. O umbu dá uma passa e, se a pesquisa agronômica reduzir o tamanho da semente, poderá ser industrializado como a ameixa. PB – E a fauna? Melquíades – No caso da fauna terrestre, o maior interesse é conservacionista. Há aves com grande potencial para o turismo, como o soldadinho-do-araripe, que só existe nos municípios de Crato, Barbalha e Missão Velha. Em Barbalha não existe mais espingarda e a cidade recebe gente da Europa para fotografar e filmar o soldadinho. Há também aves que podem ser domesticadas, como a macuca e o mutum. É só o homem trabalhar. PB – Tendo tudo isso, por que o nordeste parece andar tão devagar? Melquíades – Porque tem uma elite desregionalizada, com grandes fortunas no sudeste. Os ricos do nordeste não aplicam na região. Tiram de onde é mais pobre para colocar onde é mais rico. E o que fizeram com os incentivos fiscais? A nação jogou dinheiro no nordeste, mas o retorno foi para o sudeste, por meio da corrupção. No Ceará, quando passava na rua um carro muito bom, na época da Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, criada em 1959], dizíamos: “lá vai um carro 34/18” [alusão a dois artigos de planos diretores da Sudene]. PB – Muitos incentivos foram desviados? Melquíades – Uma vez, o porteiro do meu prédio no Rio contou que seu irmão trabalhava para um ricaço cearense que tinha acabado de comprar cinco apartamentos no Leblon e em Ipanema. Descobri, então, que havia acabado de sair dinheiro de incentivo fiscal para a empresa dele. Outra vez, quando determinado cidadão oriundo da Sudene candidatou-se a senador, houve uma “taxação” de 20% sobre o valor dos incentivos. Quem deu 20% do que recebeu da Sudene comprou impunidade. PB – A Sudene, revitalizada em 2007, não foi tão eficaz quanto sonhava Celso Furtado, seu idealizador? Melquíades – A ideia era brilhante e Furtado não teve culpa. O poder de corrupção das elites brasileiras é que é impressionante. Não há meritocracia, mas, sim, suborno e apadrinhamento. Não é só no nordeste, mas no país todo. No caso dessa região, tudo isso é ruim porque, até certo ponto, incentiva a ideia de separação. O nordeste gera mais renda para o Brasil do que o país põe lá. Tem petróleo, produtos nobres, pesca. PB – Por que o senhor critica o projeto de transposição das águas do rio São Francisco? Melquíades – A ideia é antiga, não tem novidade. Não me refiro, no livro, aos aspectos de engenharia, mas à viabilidade econômica. Quando se transporta água, o custo sobe à medida que a extensão aumenta, porque há perdas por evaporação e infiltração e despesas de construção dos canais e de equipamentos. Para chegar ao Ceará e à Paraíba, a água tem de ser elevada a mais de 200 metros para atravessar as chapadas do Araripe e da Borborema. Quanto vai custar isso? O preço vai ser 10 vezes maior que o que é pago pela água em Petrolina [PE] e em Juazeiro [BA]. Como uma empresa que queira produzir uva no Ceará vai competir com uma de Petrolina? Só se o governo pagar a diferença. PB – A obra vai mesmo ajudar a combater a pobreza? Melquíades – Essa é a primeira das quatro grandes mentiras do projeto. Se água correndo significasse fim da pobreza, as populações do vale do São Francisco não seriam tão pobres, não só no nordeste, mas também em Minas. A segunda mentira é que não vai faltar água para o nordestino. Ora, não é a do São Francisco que vai matar a sede nas grandes cidades. O nordeste tem outras alternativas, mas falta sistema de distribuição, como mostro quando escrevo sobre a grande quantidade de água represada nos açudes. Alguns foram construídos há cem anos, mas não foram feitos canais de irrigação, como no Cedro, em Quixadá [CE]. O nordeste também tem boqueirões que dariam grandes represas. E no Piauí há muitas reservas subterrâneas. O problema da água no nordeste é de aproveitamento. Há soluções caras e outras baratas, como a da cisterna, que coleta água da chuva. PB – E a terceira e a quarta mentira? Melquíades – Terceira: a água vai para todo mundo. Quem vai pagar? O país todo ou o usuário? Como o homem que mora numa tapera, distante centenas de metros ou até quilômetros de outra casa, vai pagar a construção da rede? Quarta mentira: vai favorecer a irrigação. Mas como, se o custo da água vai ser maior do que na beira do São Francisco? Isso só vai favorecer o agronegócio, à custa de incentivo fiscal. Minha conclusão é que o projeto, além de ser inviável economicamente, é eleitoreiro, feito para gerar comissão. É verdade que a entrada em cena do exército, com seus batalhões de engenharia, diminuiu a possibilidade de roubo. A grita no país foi tão grande que as empreiteiras que geram enormes comissões tiveram de se afastar. PB – Como o senhor avalia o potencial econômico do mar no nordeste? Melquíades – Os grandes recursos pesqueiros da região, assim como os do resto do país, estão superexplorados, em sobrepesca, como mostrei em 1997 no livro Recursos Pesqueiros Estuarinos e Marinhos do Brasil. Vi, no Ceará, o começo da pesca da lagosta, que antes era isca na da cavala e do peixe-serra. Na época, o Ceará produzia por ano 8 mil toneladas de cauda de lagosta. Hoje, essa pesca vai do Amapá ao Espírito Santo, mas o Brasil todo não obtém 4 mil toneladas. A ganância levou à destruição ambiental. Os empresários da pesca não aceitam a ideia de que a natureza tem limites. PB – A pesca da lagosta está ameaçada? Melquíades – No nordeste, praticamente, sim. Os barcos têm de ir ao Amapá. Para recuperá-la, é preciso autoridade e muita força. Quando começou a decair, a alternativa econômica foi o pargo. Mas também esgotaram os pesqueiros e tiveram de expandir a pesca em direção ao Amapá. O problema é que, à medida que se afastavam das bases, aumentava o custo. A falta de sistemas de congelamento nos barcos e o excesso de sol durante o manuseio baixaram a qualidade da produção, fazendo as partidas de filé de pargo voltarem dos Estados Unidos. E ainda passaram a filetar outro peixe, o pargo-negro, que não tem valor no mercado internacional. Houve um colapso que quase acabou com a atividade, porque os americanos não quiseram mais comprar. Só agora a pesca do pargo está se recuperando. PB – O que fazer para organizar de modo sustentável a pesca no nordeste? Melquíades – Em primeiro lugar, é essencial administrá-la com respeito à natureza. É preciso proibir realmente a captura de lagosta com rede e equipamento de mergulho, assim como a de lagosta pequena. Mas, para fazer tudo isso, o governo tem de mostrar força. Será que os industriais deixam? A natureza precisa se recuperar. Uma lagosta leva de três a quatro anos para chegar ao tamanho comercial. A segunda coisa a fazer é aproveitar os recursos de forma inteligente. Eliminar métodos de pesca danosos depende de investimento em tecnologia. Em terceiro lugar, é necessário agregar valor. Em vez de exportar camarão bruto, por que não já em conserva? PB – Tecnologia então é fundamental? Melquíades – Sim. Na minha instituição, desenvolvemos algumas ideias, como o caviar com ova de peixe-voador, produzido com a vantagem de não matar o peixe. O voador desova na superfície e a ova fica boiando. É recolher e fazer o produto. Propusemos também a cavala desidratada, jogada no leite de coco e depois cortada em postas. Mas os empresários não querem progresso tecnológico, porque ganham com o atraso e ainda têm ajuda do governo. PB – O problema é antigo, não? Melquíades – Saí do Ceará escorraçado, nos anos 1970, porque coloquei a nu a safadeza dos projetos de pesca. Naquele tempo, o Brasil vivia faminto de dólares. O sujeito exportava lagosta por preço menor que o de produção e ainda ganhava dinheiro, porque tinha incentivo fiscal. Era botar a partida de lagosta no navio e ir receber no Banco do Brasil, que ficava com os dólares e pagava em dinheiro brasileiro. Como o valor no mercado internacional era menor que os custos, o governo cobria a diferença. Quando estancou a mina dos recursos fiscais, várias empresas foram à falência. PB – Como o senhor vê o programa governamental Bolsa Família, que atende a milhões de nordestinos pobres? Melquíades – Não abordo esse tema no livro, mas considero que, de imediato, é uma coisa boa. Sou, porém, a favor e também contra, porque ele tende a cristalizar a pobreza, a acostumar o pobre a ser pobre. Isso tira a capacidade de criar, diminui a engenhosidade. Luiz Gonzaga já dizia que esmola não bota ninguém para a frente. É preciso que o programa tenha algum tipo de progressão. As pessoas não estão querendo que assinem sua carteira de trabalho por causa do Bolsa Família. O nordeste, como todo o Brasil, só tem uma solução: educação. PB – Quais as perspectivas de futuro para a região? Melquíades – Não são boas, como as do Brasil também não são. O problema não é o nordeste, mas a pobreza, que só se acaba com educação, para que as pessoas tenham acesso ao trabalho qualificado. Enquanto não se educar o povo, não se controla a roubalheira, o maior problema do Brasil. Outro problema: o brasileiro está destruindo o país. O que se faz no pantanal é um crime contra a humanidade. Estão acabando com o cerrado, a Amazônia, como se fez com a zona da mata e a caatinga, no nordeste. PB – Por que o senhor não demonstra otimismo? Melquíades – Sou conservacionista há mais de 50 anos e um desiludido, habituado a perder. O conservacionista no Brasil se acostumou a levar surra. Luta, luta, luta, vem um deputado e apresenta um projeto na Câmara para aumentar o desmatamento da Amazônia. Mas continuo acreditando que a ciência se faz em benefício do país. Defendi o Brasil com minha ciência e não com arma na mão. Minha arma é o cérebro, a defesa do conhecimento.